As letras andaram à solta em Fiacha, um enigma para o Corvo Negro, será que o consegue resolver? De lupa e boné aos quadradinhos, levanta voo à procura de mais um pergaminho ....
Crónicas do Corvo Negro - Pergaminho da Cidade das Letras
E se eu te contasse um segredo? Este pergaminho é dedicado a todos os escritores, a todas as mãos que gostam de escrever. Não as que escrevem só para vender, apenas as que escrevem pelo belo prazer de escrever e partilham graciosamente a sua escrita para ser admirada. É também dedicado a todos os leitores que gostam de ler histórias e não textos avaliados, ler pelo simples prazer de conhecer, aprender para si e para partilhar com os outros. Esta é a história de todos nós e de todos nós é feita esta história. O pergaminho abriu e uma brisa sorriu.
Há muitos, muitos anos atrás, ouvir as letras contar histórias fazia parte do crescimento do ser humano. Aprendiam-se em tenra idade, alternando os ditados adequados à idade e ouvidos das crianças. Mas estas crianças cresceram e tornaram-se adultos.
Enquanto a inocência era um portal para uma mente cheia de imaginação, a mãe da inspiração, as crianças liam e liam as inúmeras histórias que os adultos guardavam e, as letras de mãos dadas, mostravam-lhes mundos encantados.
À medida que iam crescendo, as histórias da vida real, faziam os adultos esquecer os livros que liam. E as letras, deixaram de ter voz para se fazerem ouvir. Parecia que ouvir as letras deixava de ter a mesma importância
Muito mudou na vida dessas crianças que se tornaram adultos. Estas deixaram de ler. O adulto que caminhava para velho achava que não precisava das letras, ele sozinho já conhecia tudo e rapidamente se esqueceu do que um dia ouviu contar. A leitura era coisa de gente pequena.
As letras lá permaneciam, anos após anos numa escuridão total, abandonadas dentro das páginas que envelheciam matando-as aos poucos.
Havia adultos que assustavam-se menos com o decorrer da vida e com as histórias reais que a compunha. Havia letras que perduravam na vida destes até a sua velhice despedir-se delas. Casos raros. Para outros, as letras foram completamente esquecidas e, também estas, esqueceram o rosto humano e o calor da mão que as desfolhava.
E no colapso da ignorância, algo aconteceu!
Conta a lenda que essas crianças no momento da transição para adulto, originaram um tremor de terra nos seus corações, e deixaram cair todos os livros, entretanto abandonados, das suas prateleiras. Quando estes chocaram no chão, todas as suas letras, soltaram-se das páginas dos livros e espalharam-se no vento que as levou a conhecer o mundo exterior.
As letras conheceram outras que até então nunca tinham visto, vislumbraram lugares de que nunca tinham feito narrativa e deixaram-se levar orgulhosas no vento libertador. Este, levou-as para um local desprovido de seres humanos. Tratava-se de um castelo perdido algures numa cidade erguida sobre uma montanha, também ele esquecido no tempo.
As letras acenaram ao vento que partiu. Entraram no castelo e percorreram as suas salas onde encontraram pergaminhos virgens e frascos de tinta novos com penas de escrever por estrear. As letras regozijaram-se de tal tesouro. Ao longo dos anos foram decorando os pergaminhos com os textos de que fizeram parte, descrevendo essas histórias, os saberes, a experiência da viagem que fizeram pelo mundo.
As penas de escrever recolocavam-nas nos pergaminhos. As letras voltavam a erguer-se e eram reescritas de novo. A pena de escrever não tinha poder para criar letras novas sem a mão que escreve. Apenas podia construir textos através daqueles que as letras conheciam e lhes ditava dando-lhes lugar no papel, colando-as com mais um pouco de nova tinta.
Com o passar do tempo, as letras sentiram um profundo vazio. Por mais que se reutilizassem, parecia faltar uma evolução e uma certa magia que as tornasse mais reais, o conhecimento que tinham não evoluía, precisavam de novos saberes. Precisavam da mão que escreve e do calor do coração que a aquecia.
Passadas décadas de isolamento, as letras foram entristecendo pela falta da mão do homem e dos livros de onde estas caíram. Os pergaminhos e a tinta tinham terminado há muito tempo com a deterioração e uso. As próprias letras estavam a desvanecer-se com o tempo. As penas de escrever sentiam-se secas e gastas. Então a cidade foi escurecendo tomada por uma solidão e tristeza.
Mas, em certas letras jorrava a tinta de livros heróicos, noutras corria tinta poética e noutras a tinta de sonhadores, todas elas enchiam o mundo de aventura e perseverança. Uma letra, em especial, viu na aurora de um sol acabado de nascer, o caminho que as levaria a resolver os seus problemas. Caminhou determinado em direção daquele caminho na certeza de mudar o rumo da sua vida. Parou. Olhou para trás. Olhou o castelo que conhecia há tantos anos e olhou tantas letras a quem já dera a mão.
- Onde vais “N”? – perguntou o “c” aflito.
- Sinto falta de compor novas histórias “c pequeno”, sinto falta de sentir o que sou. Sinto falta da mão quente que abraça o lápis e que me escreve - respondeu o “N” esmorecido.
- Faz-me falta dar vida aos sonhos, aos desejos - respondeu a “pena branca” que escreve, sentindo-se tão gasta.
- Mas não há mais nada para ver – dizia o “c pequeno” na memória consumida, de que, o mundo era apenas um castelo cheio de letras e de iguais e velhas histórias.
- As letras mais usadas falam de um mundo cheio de coisas que mudam todos os dias - contava o R num sussurro como se revelasse a direção de um tesouro - Os humanos têm muito para ensinar. O mundo precisa de conhecimento novo para que as novas letras sejam mais perfeitas, fazendo nascer também, mais perfeitos humanos. E estes precisam de nós para guardar esse conhecimento. Nós somos as últimas letras no mundo inteiro.
- Eu tenho medo de conhecer novas coisas – desabafou a “pena de pavão” que escreve, e que só conhecia o que aquelas letras lhe ensinaram - Eu gostava de escrever um livro inteiro com letras desenhadas de origem por mim.
- Gostas de escrever “pena branca”?– perguntou o “N” com um brilho no seu contorno.
- Sabes “N” – discursou gesticulando em evocação a “pena branca” no entusiasmo que as penas sentiam, e num instante, todas as letras juntaram-se a ouvir - escrever é….sentir sem limites. É sonhar sem pecado. É viajar pelo impossível. É dotar a simples mão da capacidade de criar novos mundos. É aceitar o estranho, o novo, o imaginável em bruto. Escrever é a manifestação de carícias do coração, é a filosofia do pensamento, é a alma a contar segredos.
- Escrever é conceber vida aos sentimentos ocultos que não têm linguagem, desenham-se em símbolos profundos de simbolismo e conceito – falou a “pena de pavão” caminhando em direção à “pena branca” - não importa a escultura da palavra, nem tão pouco, o tamanho dos pedaços de sentimento. É a força do sentir ao ler, é a emoção de viver e a saudade que esta deixa na memória.
- Disse-me em tempos uma mão que escreve – relatou o “R” saudoso - que quando fechada com um lápis ou qualquer caneta, sentia o abrigo do encantamento da inspiração que exercia magia sobre os seus dedos. O carvão ou a tinta dançavam nas páginas brancas marcando-as de prenúncios e desabafos, de ideias e de coisas a recordar. Para a “mão que escreve”, nós somos símbolos, que de mão dada, transformamo-nos em histórias desenhadas e unidas em palavras.
O “L” entusiasmado e nostálgico juntou-se aos parceiros e relatou: - as palavras são amantes de carícias e desejos. Os olhos dos leitores viajam enfeitiçados pelas linhas que nos contornam, namoram os sentimentos revelados no rasto das frases que compomos, riem e choram o nosso romance, o terror, o suspense.
- A “mão do coração” embala o sentimento e escreve crente da sua língua, sendo fiel ao princípio e visão da sua maturidade – continuou o “R” - Não se estende equívoca à vontade dos olhares alheios que as querem distorcer com outras esculturas como acontece com certas mãos. A “mão que escreve” conforme dita o coração é fiel à sua inspiração e vontade, cresce à gratificação de quem por ler, alegra e evolui para as fazer crescer.
- A vontade de escrever são cócegas da inspiração, é evocação de bom prazer e de meditação - dizia alegre a “pena de pavão”- não deixa decair o sentimento, embala o encorajamento de desenhar mais alto. A obra bem acolhida, sendo bem lida e interpretada de verdade, conhece a filosofia da visão de uma consciência maior, não deixa alegria nem dor, deixa vontade de melhor conhecer. E eu, quero muito conhecer a “mão que escreve”.
- A mão que embala as palavras, não é escrava nem possuidora, é mensageira travessa de um sentimento maior, da dita força inspiradora – sorriu o “S” - é a voz dos sentidos, descreve o que sente, o que vê, o que cheira, o que ouve, o que lhe mata, o que lhe faz viver, o que a motiva e entristece. A “mão do coração” são personagens lembradas da memória, são personagens vivas de histórias sonhadas, são retóricas de pensamentos, são relatos de momentos.
O “N” sorriu com tudo o que foi dito e caminhou vaidosa na aurora que os ouvia - a escrita da mão nem sempre é perfeita. A perfeição da escrita também depende da “mão que lê”. Ela é lida e vivida conforme quem a acolhe. Não é amada por todos nem valorizada por alguns, mas merece o respeito e encorajamento da mão conseguir desenhar melhor. O mais importante a valorizar é o sentimento que as letras transportam. Escrever bem qualquer “mão que escreve” consegue, depois de aprender a matemática das letras. Mas escrever com a “mão do coração”, não se aprende, sente-se, ouve-se e partilha-se. São letras dessa mão que ficam na memória do coração do leitor. Sabe a doce, não precisa ser de perfeito cálculo, precisa apenas de ser doce. A melhor guloseima é encontrar a letra com a receita completa.
- Escrever é a agradável surpresa de uma inspiração que é breve e repentina – sussurrou o “B” enquanto caminhava amparando o “A” - enaltece e dá força a uma outra voz, a voz dos dedos que a “mão do coração” embala e através dela, cria a arte de viver outros mundos fora da sua própria mão. É fazer brilhar um céu cheio de estrelas no olhar dos leitores, alimentar um coração que cresce até ocupar o corpo inteiro, é elevar o pensamento à alma que se sente.
- Escrever, meus amigos, é a arte de desenhar sentimentos – concluiu o “A” satisfeito.
Todas as letras pareceram sentir um formigueiro especial, a adrenalina suficiente para se convencerem que precisariam de novas páginas, novas mãos para usarem as penas, os lápis e canetas. O humano é filho da inspiração e através dela, o mundo muda, renova, transforma-se todos os dias, por isso, através desse caminho, novas letras nascem e crescem nos pergaminhos que as guardam deliciosamente para passar de gerações em gerações. Um vice-versa contínuo e dependente.
As letras precisavam de magia e só havia uma forma de transformarem o mundo num lugar onde a letra e o homem se tornassem num só, parceiros e única receita para um mundo que evolui positivamente de forma ininterrupta e consistente.
As letras seguiram-se umas às outras, acompanhadas pelas penas de escrever através do caminho que a aurora marcou que foi subindo, subindo, elevando as letras até um raio de sol que as levou a percorrer uma nova viagem.
O céu era partilhado pela mesma saudade e ensinamento. O ser humano sem letras e as letras sem o ser humano, perceberam após décadas de solidão, que separados não poderão sentir-se verdadeiramente vivos. São inúteis no mundo e para o tempo.
Chegadas à povoação, um conjunto de letras abraçou cada ser humano que encontrou, até não sobrar mão. As penas de escrever encontraram novas tintas e conheceram finalmente a “mão que escreve”.
A partir desse dia, o homem tornou-se mais inteligente, perspicaz, capaz de viver são e pleno num mundo cheio de encantos e novos ensinamentos. As letras, sentiram-se mais felizes, úteis e cresceram rápidas e sábias.
Muitas letras encontraram-se em novos pergaminhos, outras conheceram-se em salas cheias de livros. A história da cidade das letras ficou para sempre guardada no sangue do ser humano e na tinta das letras, para que, nenhum se esqueça que a sua importância e magnificência, depende da magia da “mão que escreve”. Não basta nascer-se letra, é importante que ela saiba encantar o coração dos homens. Só assim, a mão saberá igualmente escrever bonitas e maravilhosas letras.
As crianças voltaram a ler, o homem continuou a escrever e o velho morreu com o livro na cabeceira.
O corvo negro viajou até encontrar descendentes da “mão que escreve”. Encontrou, pelo caminho, penas à espera de mãos ardentes de imaginação. Brilhavam nas montras, novas e elegantes à espera de um encontro com a mão.
Continuou a viagem até uma terra chamada Massarelos, terra de gente com história, recriada no Fiacha com os lugares mais especiais para aquela que ansiava encontrar. Encontrou a “mão que escreve” a desenhar sentimentos, uma misteriosa aventura no Halloween. As letras dançaram no papel em branco enamorado pela voz da escrita, em pleno jardim do Palácio de Cristal. Fazia-se acompanhar pelo enigmático e especial gato, o Bam. O corvo negro sentiu na dança das letras, o crescimento da mão e da enaltecida inspiração precoce, no prenúncio de desenhos perfeitos. Sorriu ao corvo negro no agrado do encontro e logo lhe ofereceu um livro repleto de letras desenhadas por si. Na capa com o seu nome, uma letra chamou a atenção do corvo, o “N”.
- Obrigado Nádia, letras escritas pela mão do coração só poderão ser lidas pelo próprio.
O bater de asas foi um multiplicar de felicidade. No salão todos os presentes felicitaram a nova chegada e a lenda foi citada de novo pela mão que lê. O castelo da cidade das letras é hoje um castelo onde o homem e as letras trabalham em conjunto. Lá dentro, um salão mágico acolhe toda a arte que a mão é capaz. O castelo do Corvo Negro.